Fontes do mercado de seguros também esperam que a atualização do marco regulatório, que aproxima o Brasil de economias mais desenvolvidas como a dos Estados Unidos, ajudará o governo a reduzir a elevada quantidade de obras inacabadas que existem no país.
Um relatório do Tribunal de Contas da União, TCU, estima que havia quase 31.000 projetos de infraestrutura parados, de um total de 88.097 obras em andamento, em 2022.
Para tentar mitigar este problema, o governo aprovou em 2021 uma nova Lei de Licitações que, entre outras mudanças, reforça o papel das empresas subscritoras de seguro garantia na estruturação e na gestão de projetos de infraestrutura.
As novas regras entram em vigor em abril. A partir de então, as seguradoras poderão vender coberturas de seguro garantia com limites de até 30% do valor total do projeto. Até então, os limites se restringiam a 5% ou, em alguns casos, a um máximo de 10%.
Os novos limites de cobertura podem ser exigidos por entidades governamentais em casos de projetos que demandem investimentos superiores a R$200 milhões ($38,3 milhões). A regra se aplica a projetos licitados pelo governo federal, mas analistas acreditam que administrações estaduais e municipais também devem seguir o mesmo caminho. Da mesma maneira, empresas estatais podem aplicar os novos limites para seus próprios processos de licitação.
Uma outra importante novidade introduzida pela Lei de Licitações é que, no caso de um sinistro, a seguradora pode assumir a responsabilidade pela conclusão da obra, ao invés de pagar o valor do prejuízo ao órgão licitante.
As mudanças foram inspiradas principalmente pela experiência do seguro garantia no mercado americano, onde projetos licitados pelo governo federal exigem a contratação de completion bonds (Garantia de finalização do contrato) que cubram 100% do valor da obra.
Ainda que os limites permitidos pela lei brasileira sejam muito inferiores, os especialistas acreditam que devem ser um incentivo suficiente para promover mudanças no modo de atuação do mercado local de seguro garantia.
“O percentual de 5% não era suficiente para a finalização das obras, ” afirma Cristina Tseimatzidis, a diretora de Garantia e Linhas Financeiras na WTW em São Paulo. “A grande pergunta agora no mercado é se os 30% serão suficientes, e como as seguradoras vão fazer no ponto-de-vista do gerenciamento de risco. ”
Ela acredita que o mercado terá agora que ser muito mais rigoroso na hora de avaliar se um cliente será capaz de cumprir com as promessas feitas durante o processo de licitação. As seguradoras terão que considerar não só a situação financeira do cliente, mas também sua capacidade técnica para terminar o projeto. Também deverão considerar a experiência das empresas que participam de licitações, os provedores de financiamento e de capital para os projetos, e a capacidade de todos os envolvidos na participação de estruturas de projetos financeiros.
Além disso, algumas seguradoras podem investir na criação de equipes especializadas em engenharia, enquanto outras podem focar em alguns tipos específicos de obras de infraestrutura.
“A lei vai trazer um crivo maior para a aceitação da seguradora. A seguradora não vai mais aceitar qualquer coisa, ” diz Leandro Freitas, responsável pela área de Linhas Financeiras na MDS Brasil, em São Paulo.
Tseimatzidis espera que algumas seguradoras tenham um elevado grau de especialização, e que o mercado recorra ao resseguro global para obter capacidade suficiente para oferecer limites mais elevados.
“O resseguro terá papel fundamental neste mercado, ” diz ela.
Outro importante efeito das novas regras deverá ser o estabelecimento de relações mais estreitas entre as seguradoras e as empreiteiras que participam dos processos de licitação. As empreiteiras terão que integrar os aspetos securitários em um estágio inicial do processo de estruturação das ofertas, diferentemente do que ocorre hoje em dia, quando as consultas sobre o seguro garantia e outras coberturas acabam ficando para as últimas etapas.
“O que se percebe é um estreitamento de laços, que é o que a gente vê muito no mercado norte-americano,” diz Carolina Jardim, a responsável pela área de Credit Specialties da Marsh em São Paulo. “Lá, a seguradora é uma parceira do empreiteiro, que compartilha com o mesmo os números financeiros e a estratégia de negócios.”
Em sua opinião, uma relação mais próxima traz benefícios para ambas as partes. Por um lado, os empreiteiros terão que compartilhar uma maior quantidade de informações sensíveis com seus seguradores, e não vão querer fazê-lo com várias empresas a cada licitação de que participem. Por outro lado, as seguradoras têm interesse em conhecer a fundo os clientes que participam de licitações para o caso de ter que contratar alguém para finalizar uma obra que assumiram devido a um sinistro.
Jardim observa que, atualmente, as coberturas de seguro garantia são compradas basicamente de acordo com seu preço. Isso deve mudar com as novas regras. Ao aumentar os limites segurados, as entidades licitadoras podem mostrar uma maior tendência a aceitar ofertas menos vantajosas em termos de preço, se elas aumentarem a possiblidade de que os projetos sejam de fato concluídos.
Além disso, a Circular 662, publicada pela Superintendência de Seguros Privados, SUSEP, no ano passado para adaptar o setor à nova Lei de Licitações, dá uma maior liberdade para que as seguradoras ofereçam cláusulas de seguro garantia que se adaptem às necessidades específicas de cada projeto.
“A nova legislação dá amplitude para as partes acordarem aquilo que queiram acordar, e, se há capacidade de resseguro disponível, podem ser criadas coberturas específicas para um cliente ou para um nicho de mercado,” diz Tseimatzidis. “Nós já estamos fazendo estudos com o mercado para oferecer novos produtos e trazer coberturas do exterior.”
Com isso, entidades representativas do mercado de seguros, como a Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), já estão conversando com as agências de infraestrutura como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para desenvolver clausulados adaptados para cada setor.
“Cada ente público deve redigir suas próprias cláusulas de seguro garantia. A ANEEL terá seus próprios requisitos, e a ANP também terá os seus,” afirma Freitas.
Algumas agências já estão experimentando pedir diferentes limites de coberturas para o seguro garantia de acordo com o grau de agressividade das ofertas nas licitações de concessões, afirma Jardim. Isso já vem acontecendo, por exemplo, em projetos de concessão de energia, onde completion bonds (Seguro garantia) no valor de até 10% do projeto podem ser exigidos de participantes que apresentaram ofertas debaixo de um determinado valor. O limite normalmente solicitado em concessões é de 5%.
Em realidade, as concessões não estão incluídas na nova Lei de Licitações, mas um novo marco para o setor também está em discussão no momento, e pode trazer inovações também neste setor, de acordo com os especialistas.
De qualquer maneira, Jardim acredita que as obras de infraestrutura devem receber um impulso no futuro próximo, uma vez que foi um tipo de investimento privilegiado nos governos anteriores do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
“Com o novo governo e a nova lei, e também com a discussão de um novo marco para as concessões de infraestrutura, acreditamos que as obras públicas vão ganhar preponderância novamente, ” afirma.
Ainda mais importante é a possibilidade de que se evitem mais atrasos na finalização de obras de infraestrutura.
“Uma obra inacabada tem um custo muito maior, ” diz Jardim. “É muito mais difícil para uma empresa assumir uma obra que teve o contrato rescindido e ficou parada por algum tempo. ”
O mercado poderia também ganhar novos investidores, já que companhias de outros países, especialmente da América Latina e dos Estados Unidos, têm expressado interesse no setor desde que várias das principais empreiteiras brasileiras foram afetadas nos últimos anos pela Operação Lava Jato.